A grafia de um desenho do cosmos é uma construção cultural e varia de acordo com a civilização que a produziu. É uma projeção de aspectos abstratos, talvez sonhos, à materialização de expressões e de ideias sob determinadas formas de exposição gráfica representativa.
Por Egídio Mariano
Uma tese que recorrentemente procuro ler a um melhor estudo egiptólogo, e da qual alguns conceitos ocidentais de sacralidade e de civilização podem ser interpretados à historiografia humana do que se revela dela pelo saber do conhecimento do significar seus termos, é a tese A SIMBÓLICA DO CORAÇÃO NO ANTIGO EGIPTO de Rogério Sousa, Doutor em História com seu “Estudo de antropologia religiosa sobre a representação da consciência” (ver “Biblioteca”).
Pela tese, a título de exemplo inicial, podemos saber que “a noção de coração reflecte profundamente as categorias mentais que regeram a representação do cosmos no antigo Egipto”, dotando-se esse órgão, uma especial consideração quando reconhecido por meio de seus atributos psico-afetivos e significativos à vontade humana. É em razão desse pensamento animista, aliás, animus, que se motiva a vida motora do corpo da physis, e, a partir do que, passa a existir um significado mental para além do órgão físico que dá origem ao ritmo cardíaco voluntário e, assim, ânimo ao corpo, de tal forma que se torna um elemento integrador de um número infinito de alternativas interpretativas, quando, ainda de acordo com a tese, se cita:
O músculo cardíaco, como força motriz do corpo, foi perspectivado como a sede da vontade e do intelecto, enquanto que o coração ib, o interior do corpo, foi investido com a interioridade do indivíduo, abrangendo todos os aspectos da vida interior com especial preponderância para a sensibilidade e as emoções. A atribuição da responsabilidade pela vida anímica e mental ao coração não resultava de uma análise fisiológica destes órgãos, mas sim da aplicação do pensamento animista a uma certa interpretação das funções fisiológicas destes «órgãos». Foi deste modo que, constituindo o garante de conectividade corporal, o coração foi investido com a função de assegurar a conectividade cósmica do indivíduo. Esta transposição transformou totalmente a formulação antropológica do coração, conduzindo a uma elaborada reflexão acerca da integração cósmica do indivíduo. Perspectivada a partir destes eixos, a consciência era entendida como o resultado de um processo dinâmico sempre em aberto que podia, sob certas circunstâncias, levar o indivíduo a ascender a um estado de consciência superior. Foi em torno deste objectivo que se centraram as preocupações da espiritualidade egípcia. p. 383
E são esses alguns aspectos fundamentais para a compreensão humana, e pelos quais não não se pode ter desprezo, pois demonstram pelo conhecimento que está implícito ao órgão da vontade, uma luminosidade capaz de ser base a uma efetiva existência multidimensional, que se constrói em vários planos, desde o corpo mentalmente disposto em uma relação de significado até, e também, o longo processo histórico constituído pela iniciativa imediata ao primeiro bombear de sangue pelas paredes internas do órgão que é comum a tantas espécies animais, e, efetivamente, avaliado para se pôr a ideia de estar vivo ou morto, animado ou inanimado que seja.
Assim, toda ação inicial de uma vontade encontra um processo de desenvolvimento ao longo de sua trajetória por um meio e para uma finalidade que lhe é própria para ser compreendida através do transcorrer de transformações que, apesar de não existir o tempo, o representa pelo significado de torná-lo compreensível através de princípios, com seus meios e com seus fins.
Há um “coração cósmico” (hati) ao Antigo Egito e, de acordo com a tese, está representado pelo Sol que é sustentáculo fundamental à realidade da vida do Nilo pré-histórico e cíclico, dia a se fazer dia, e sem o qual a existência ficaria imersa na escuridão, seja essa simbólica ou física.
O coração ib, da materialidade da natureza da physis corpórea, é de um estado inicial a partir do qual todo ser humano parte ao nascer. Aliás, um outro aspecto que é muito interessante da tese, é a psicostasia, ou ainda, o rito em torno do qual o coração do homem egípcio era pesado na sala em que Maat (Ma’et), a deusa da Justiça, pesava o órgão em relação ao peso de uma pena, seu símbolo. Sobretudo, era o momento de um “renascimento” simbólico a um novo mundo quando o evento do parto, como meio, é representativo a um segundo nascimento, não entregue à morte, com especial destaque:
A sabedoria, tornava-se, deste modo, numa via que permitia ao homem identificar-se com um ideal de conduta e adoptar um estilo de vida que conduzisse à santificação. Se os destinatários dos primeiros escritos eram os funcionários reais e o seu objectivo era facultar ensinamentos para uma vida bem sucedida, à medida que nos encaminhamos para o fim da civilização egípcia deparamo-nos com textos redigidos para sacerdotes, com o intuito de educar para a santidade.
A influência e o peso destes modelos de conduta não devem ser subestimados, sobretudo se tivermos em conta que a transformação espiritual estava profundamente relacionada com as crenças do Além. A psicostasia, formulada no Império Médio, pressupunha que o comportamento transformava o coração. A salvação ou a condenação eternas deviam-se à capacidade do homem para agir de acordo com ordem cósmica. Ao realizar a harmonia nos actos da vida corrente, o homem atraía para si a vida e a paz. Ao fazer o que era odiado por deus, o homem atraía a morte e o castigo. Deste modo, através das suas acções, o homem purificava ou corrompia o seu coração. (p.386)
De acordo com o autor, foi durante o Médio Império egípcio, entre os séculos 2000 a 1580 a. C. que o coração ganhou uma função cósmica, e nessa interpretação de funcionalidade, um comparativo à perpetuação através da consciência à luz de uma criação divina, um deus masculino que com seu sêmen, fecunda à realidade com os elementos de sua criação, num cosmos a se constituir o seu reflexo no caos do evento não criado. O elemento criativo é, portanto, fundamental a toda ação que se inicia do mais luminoso astro no céu, como astro rei e determinante à vida, até a mais escura forma de concepção, os submundos. [“O Livro dos Mortos”]*
Como Rá (Sol) no mundo da Antiguidade Egípcia, o faraó manuseia a realidade psico-interpretativa e motora da aplicação e do uso das mãos à transformação do caos em forma organizada, talvez moldando o ser humano como uma peça de barro, dotando-o de um coração ib, por assim dizer “primitivo”, que palpita de ânimo de vida, para, então, soprar ele uma consciência multidimensional através do seu conhecimento divino que desvenda os olhos primitivos do homem a um novo homem, dotado de um coração “hati”.
Numa progressão de eventos em evolução, a vida nasce com sua respectiva linha de desenvolvimento em múltiplos aspectos de sua presença ao plano de qualquer existência de fatos. A ação de uma iniciativa qualquer está geralmente ligada à construção de um cenário perceptivo futuro de resultados, os que possam influenciar o estado presente e contínuo com o acréscimo de desenvolvimento e de conhecimentos. A cultura como espaço derivado da percepção de mudanças durante um transcorrer de tempo demonstra a vitalidade de um povo e de sua capacidade de se comunicar pelas várias linguagens que estão acessíveis às suas interações enquanto sociedades organizadas. Parece-me que “o coração cósmico” pode ser comparado ao conceito de “coração hati” egípcio, ou às suas qualidades quando pensamos na ideia de um desenvolvimento progressivo de conhecimento, ou se pensarmos na ideia de evolução humana à luz de algo superior e guia que se manifesta através dos resultados das ações dos homens. Por isso, a capacidade intelectiva de criação se tornou uma capacidade humana de fazer parte da criação, quando o trabalho de artesões e de agricultores, os que dependiam diretamente das mãos, pode ter sido tão determinante às culturas humanas quanto ao nascimento das civilizações que nos são conhecidas, derivando-se daí um novo cosmos.
COSMOS, substantivo masculino; 1. COSMOLOGIA: espaço universal, composto de matéria e energia e ordenado segundo suas próprias leis; universo; 2. FILOSOFIA: na filosofia grega, a harmonia universal; o universo ordenado em leis e regularidades, organizado de maneira regular e integrada.
- Ver também Cosmovisão
*Psicostasia é o nome atribuído a uma cena comum representada no Livro dos Mortos que retrata a cerimónia de pesagem do coração do defunto no tribunal da deusa Maat.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Psicostasia
CONTEÚDO DA TESE acessível pelo endereço abaixo :
https://www.academia.edu/35061338/Disserta%C3%A7%C3%A3o_de_doutoramento_em_Hist%C3%B3ria_A_SIMB%C3%93LICA_DO_CORA%C3%87%C3%83O_NO_ANTIGO_EGIPTO_Estudo_de_antropologia_religiosa_sobre_a_representa%C3%A7%C3%A3o_da_consci%C3%AAncia
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