Intérpretes presentes

A escrita nas areias de um deserto

Por Egídio Mariano

Apresentação

A qualquer um que ocupe um pouco do seu tempo com o estudo da história do ser humano, logo percebe a infinidade de trabalhos publicados sobre o período da Antiguidade Egípcia, e o percebe como um sinal de um dos mais promissores campos de pesquisa em razão dos levantamentos de dados e de informações fundamentais às áreas da arqueologia e dos estudos culturais que cercam as compreensões das Civilizações da Antiguidade. A própria concepção de história dos povos teve berço nos conhecimentos que se seguiram às civilizações da antiguidade e que possibilitaram o acesso a conceitos de inúmeras tecnologias, muitas das quais, por exemplo, estão ligadas à área de medicina e à de saúde humana como as que viriam a fundamentar um Estado egípcio faraônico assim organizado por milhares de anos.

Bem como é provável que, na mitologia egípcia, povos distintos tenham encontrado uma base de entendimento espiritualizado da realidade das sociedades em que viviam pela ideia de manutenção da vida tal qual a conhecida por eles, mesmo que depois da morte, trazendo-lhes uma espécie de espaço de refúgio com alguma sofisticação relacionada ao desenvolvimento tecnológico que se aplicava à natureza de seus cultos dentro dos templos, ou, em outros sentidos, no centro de poder político e da vida estatal egípcia, a depender de qual deus egípcio o templo de culto tivesse sua origem.

De ofício entre os escribas, por exemplo, eram feitos os registros da organização que o Faraó determinava a seus servos, sujeitos às ordens superiores das relações de poder do panteão egípcio que, por obra de seus mensageiros, também os de Thoth, executavam as ordens e as entregas dos resultados do que se encontrava inscrito como nota que comunicava vivos e além vivos dentro de um refúgio moral inscrito numa mesma dimensão de civilidade, embora, como mensageiros, tantos escribas quantos demais servos vivessem seus riscos na resolução de uma alguma ordem, é compreensível de se supor que na maior parte do tempo tenham vivido como homens burocráticos no controle dos estoques de alimentos, nos registros das cheias e nas medições das extensões cultivadas. 

Portanto, considerando a natureza incerta que existisse fora dos domínios da figura do faraó, viver sob o controle dele, talvez, fosse um refúgio e, inclusive, refúgio sob um aspecto espiritual que consolidava um sentimento de bem-estar em diversos níveis de compreensão humanos, principalmente em relação a necessidade e ao sentimento de se ter fundamentos com origens particulares baseadas em histórias ancestrais.

Se, hoje, ao nascermos, muito rapidamente somos levados a acordar para a realidade da vida em sociedade em que devemos nos adaptar, talvez, por outro lado, na antiguidade egípcia, se recorresse mais às crenças e às superstições numa evidente relação de concordância natural entre dimensões distintas guiadas por forças além daquelas visíveis a olho nu, e, por meio dessas, assim invisíveis, estivessem todos os servos do faraó protegidos num mundo plural de cultos e de crenças de usos tecnológicos.

Talvez, em razão disso e apesar de transcorrido milhares de anos, o período da antiguidade egípcia ainda desperte tantos assuntos, tantos estudos, tantas expressões culturais de uma realidade tangível aos deuses que, em alguns pontos da história, determinaram formas específicas de sepultamento dos corpos, do trato da vida em um cotidiano social que, pacato, tinha por base o plantio e a colheita de grãos às margens do Nilo. 

Os centros de referências

Um estudo da vida local, da maneira como as pessoas nativas vivem, é, em grande parte, a maior obra documental que a história escrita possibilitou, ainda que nós partíssemos apenas de anotações de controle alfandegário, de observações sobre as marés em um dado porto a estrangeiros, ou do registro da população de uma região e de seus meios de subsistência, cultura alimentar, meios de irrigação, de sua ocupação sazonal e de uma infinidade de outras informações que se inscreveram permanentemente em artefatos históricos que nos chegaram como testemunhas de um tempo que não mais existe.

Sobretudo, as cidades egípcias da antiguidade eram centros de referência para onde afluíam uma gama complexa de conhecimentos não categorizados como hoje os são delimitados em ciências de conhecimentos. Compreender, então, os habitantes locais por meio de seus hábitos e de suas crenças se tornaria o entendimento dos espaços em que eles viviam e onde eles acreditavam viver com seus deuses, esses últimos que permaneceriam, apesar de invisíveis, nos espaços físicos pela recorrência de eventos cíclicos numa região, ou ainda, na forma própria que a população local creditava nele suma expressão própria de fatos interpretados a ocorrerem, como naqueles que são encontrados nos hábitos de limpeza pessoal e de limpeza do abrigo físico, do templo, ou mesmo nos hábitos de manter organizado e de determinada maneira os utensílios e ferramentas, como ofício, ou ainda na organização do culto diário aos deuses que ligava o espaço interno e externo a quem, assim, demonstrasse uma plena capacidade de comunicação para com além desconhecido.

 

A obra do faraó

Mas o porquê de tudo isso? Mesmo no século XXI o maior número de desafios que se possa estar sujeito se limita, em grande parte das vezes, a como lidamos com as mentalidades, sejam as próprias ou as de terceiros, mas ambas relacionadas às realidades de quem as vive. A forma com que nos damos a conhecer qualquer meio de vida, e que aqui chamamos de “mente”, compreende a entidade que se interpreta pela leitura que fazemos do mundo e a que tenhamos acesso em nosso tempo, pois, para cada indivíduo que interpreta, uma mentalidade trata das compreensões que parecem verossímeis ou não ao intérprete da leitura. Nessa análise, a voz que traz as relações de sentidos acabam, também, por estruturar uma lógica própria à interpretação dos fatos e de como esses são representados nos eventos dos mundos, quando, sobretudo, se compreende quais dimensões passa a se fazer parte por estar em um plano subjetivo quanto a forma de se pensar, ou seja, uma mentalidade presente e ali inscrita tal qual narrativa individual e de igual maneira coletiva de se contar histórias. 

Desde muito tempo, os pressupostos são fatores que condicionam qualquer compreensão de mundo por alguém numa relação de diálogo. As culturas expressam, pela fala humana, os mundos paralelos a que estão atadas pelas decisões dos viventes, mesmo quando esses desconhecem os seus destinos e suas origens, porque se trata de um conjunto de fatores desconhecidos pelo ser humano que, de maneira geral, cabe na questão da interpretação, reformulada do caos para o que é possível e, uma vez organizado como narrativa, tornando-se entidade imortalizada pela memória, cultuada por seus atributos em dimensões distintas, mas nas quais se encontram as fragilidades e os pressupostos dos argumentos que legitimam a crença de pessoas em determinadas práticas de vida, pois, se os pressupostos se mostram verificáveis, como denota a ciência em seus argumentos, as alternativas interpretadas por verdadeiras são formas de determinar as decisões que implicam em certa governança das múltiplas realidades, o que nos leva a nos perguntar: somos realmente livres em nossas trajetórias de vida? “Escrevemos”, realmente, por meio de nossas escolhas os nossos destinos? Ou somos conduzidos pelas narrativas que nos tiram de nossas verdadeiras escolhas, não nos deixando outras maneiras de evidentemente traçarmos nossa história?

 

A escrita nas areias de um deserto

“Vocês vão deixar saudades por onde passarem” foram os dizeres de uma senhora com cerca de noventa anos a um jovem casal que empreende uma pesquisa sobre os meios de vida de povos que já não possuem testemunhas além daquelas que ficaram registradas em artefatos, hoje, históricos. É por ser uma percepção interpretada como advinda de Deus, que nossos passos seguem seguros a uma decisão que, em encruzamento centenário, pode definir os destinos de narrativas escritas nesses artigos lidos por inúmeras pessoas de histórias distintas, mas que na memória comum dessa narrativa mística, se comunicam num mesmo plano sutil. Ao entender as dinâmicas que existem nas interações pessoais pelas mentalidades que se mostram através dos diálogos, das histórias, dos espaços, nos traz à compreensão do que é a vivência de cada um em seu retrato nu e cru sob pontos de vistas tão diversos e tão internos quanto externos à narrativa de si mesmo. O local como vivência de espaço imediato é ponto que se liga à linguagem do século XXI pela forma de interpretar parâmetros que acompanham o indivíduo onde quer que esse esteja, relacionando-o com sua capacidade de comunicação e de mediação quanto ao meio através de uma cultura maior e mais ampla de sua humanidade.


Pensar a cultura local por seus intérpretes é como estar alheio às realidades locais, mas imerso nelas pela reflexão do que ensinam e do que oferecem de alternativas a um modo de consciência já determinante pelas condições gerais das sociedades pós-modernas em que nos encontramos. O plural pode ser caótico nesses casos de realidades fragmentadas ou descontínuas, mas ele existe continuamente independente da organização que podemos dar à interpretação do que é plural na vida em sociedade.

Com a mensagem, o mensageiro também é uma linguagem de quem interpreta a mensagem. Um faraó, ao conquistar a realidade de sua vontade organizada, se colocaria a fazer de sua vida uma entidade a percorrer os séculos em imutáveis esculturas quase vivas do que ele compreendia ser sua história quanto à concepção da obra: uma cultura local imortalizada em uma concepção de aldeia; uma mensagem deixada para uma ação de consciência quanto às histórias que são parâmetros de sentidos compreendidos quando o rio e o mar se encontram em suas energias num mesmo estuário de aspectos negativos e positivos interpretados por povos ribeirinhos que viam nos eventos cíclicos da natureza o efeito curativo de um espaço, mas sob um aspecto sutil que se repetiu muitas vezes e por gerações, determinando hábitos e expressões próprias de um lugar tomado, sobretudo, como refúgio frente a um mundo de possibilidades infinitas de um eterno desconhecido caos. Talvez, por isso, podemos dizer que somos sozinhos quando nascemos, mas que, depois do nascimento, não estamos mais sozinhos, porque tudo o que vivemos está compreendido nessa companhia contínua a que chamamos de nossa realidade, e essa vai para além do corpo em que nos encontramos vivos, vem de antes de nascermos, e seguirá para depois do que vivemos, o que diz respeito à vida de interdependências biológicas e sociais que nos demandam decisões relacionadas às atitudes durante todo processo que nos ocorre nessa passagem como vento sobre as areias de um deserto.
 
Por Egídio Mariano