De Rodrigo de Oliveira Andrade Via Pesquisa FAPESP
Os Estados Unidos vivem um processo de revalorização da ciência, da tecnologia e da inovação (CT&I). Se os quatro anos de governo de Donald Trump foram marcados por nomeações controversas para gabinetes de aconselhamento em assuntos científicos, redução do papel de pesquisadores na formulação de políticas públicas e interrupção de projetos de pesquisa estratégicos, a administração do presidente Joe Biden planeja retomar a tradição norte-americana de investimentos públicos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), com apoio a empresas inovadoras e tecnologias específicas.
Uma das primeiras medidas de Biden nesse sentido foi a nomeação do geneticista Eric Lander como cientista-chefe e diretor do Escritório de Políticas de Ciência e Tecnologia (OSTP), comitê consultivo que assessora o presidente em assuntos de CT&I. Lander é figura influente na comunidade científica norte-americana. Professor no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), teve papel destacado no programa de sequenciamento do genoma humano, concluído em 2003. Ele já havia copresidido o Conselho de Ciência e Tecnologia (PCAST), outro painel consultivo de assessoramento da presidência, de 2009 a 2017.
O anúncio de sua nomeação se deu em 15 de janeiro, pouco antes de Biden assumir oficialmente a Casa Branca, e demarcou uma diferença simbólica em relação ao seu antecessor – Trump demorou 19 meses para anunciar seu cientista-chefe e diretor do OSTP. Recentemente, Biden elevou o cargo ao nível de gabinete, uma espécie de ministro de Ciência e Tecnologia. “Isso significa que Lander deverá ter mais influência sobre as decisões de Biden em assuntos de CT&I, o que é bom”, disse a Pesquisa FAPESP Matthew Hourihan, diretor do Programa de Orçamento e Política em Pesquisa e Desenvolvimento da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS).
Em abril, Biden apresentou sua primeira proposta de orçamento para 2022. O documento sinaliza um aumento expressivo dos investimentos públicos em praticamente todas as agências federais de fomento à pesquisa, sobretudo aquelas ligadas ao combate à Covid-19 e às mudanças climáticas. A peça prevê um crescimento de 22,5% no orçamento dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), que, em 2022, deve contar com US$ 8,7 bilhões. Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) receberiam US$ 51 bilhões, 21,4% a mais que neste ano. Por sua vez, a National Science Foundation (NSF), principal agência de fomento à ciência básica do país, teria um reajuste de 20%, alcançando US$ 10,2 bilhões. Para mitigar as mudanças climáticas, Biden propôs um acréscimo de 10,2% nas verbas do Departamento de Energia, que, em 2022, contaria com US$ 46,1 bilhões, e de 25,5% no orçamento da Administração Nacional Atmosférica e Oceânica (Noaa), que poderá ter à disposição US$ 6,9 bilhões. A proposta ainda será discutida no Congresso, que tem a palavra final sobre o orçamento e define quanto cada agência receberá.
Também foi enviado ao Congresso o chamado Endless Frontier Act, um dos programas de investimento mais ambiciosos das últimas décadas na área de CT&I nos Estados Unidos. A iniciativa bipartidária propõe a criação de um departamento de tecnologia e inovação na NSF, com investimento de mais de US$ 100 bilhões nos próximos cinco anos em pesquisa básica e aplicada em várias áreas, como inteligência artificial, genômica, computação quântica, tecnologias de comunicação avançada e gerenciamento de dados. A iniciativa propõe ainda aportes em educação e treinamento de pessoal por meio do financiamento de programas de educação tecnológica avançada em faculdades comunitárias e da concessão de bolsas de graduação, pós-graduação e estágios de pós-doutorado. O objetivo é ampliar e diversificar a força de trabalho nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem) no país.
Há ainda o plano de destinar US$ 10 bilhões para o Departamento de Comércio investir em centros de tecnologia e inovação espalhados pelo país. A ideia é fomentar estratégias tecnológicas regionais e, com isso, atrair investimentos públicos e privados. “Essa legislação permitirá que os Estados Unidos criem mais empregos bem remunerados”, disse à agência de notícias Reuters o líder democrata no Senado, Chuck Schumer, um dos apoiadores da proposta ao lado do senador republicano Todd Young.
A medida não tem um fim apenas econômico, mas também geopolítico. Com os investimentos, o governo norte-americano espera fazer frente à ameaça da China e de outras nações à sua liderança tecnológica, procurando garantir ao mesmo tempo a segurança nacional e a competitividade econômica. “A proposta é abrangente e vai impactar toda a nova geração de política de ciência e inovação do mundo”, escreveu o economista e engenheiro Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP em texto publicado no jornal O Estado de S. Paulo. “Ela amplia o escopo de ação da NSF, reforça a coordenação entre as agências, sinaliza ações de redução das desigualdades de gênero e raça na ciência, muda a governança do sistema e reforça seu orçamento. Faz isso definindo tecnologias prioritárias para os investimentos e estendendo o leque de apoio da NSF para além da pesquisa, buscando endereçar o gap que existe entre a pesquisa e a comercialização.”
Na avaliação do economista Luiz Martins de Melo, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apesar da percepção dos Estados Unidos como epítome da criação de riqueza liderada pelo setor privado, é o Estado que, historicamente, assumiu os riscos do empreendedorismo para estimular a inovação. “Desde o pós-guerra aquele país investe em uma estrutura governamental voltada à construção de pontes entre o trabalho acadêmico sem finalidade prática aparente e o desenvolvimento tecnológico contínuo, sobretudo no interior das Forças Armadas.”
Um dos exemplos de maior sucesso dessa política é a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa, atual Arpa). Criada em 1958 com o objetivo de dar àquele país superioridade tecnológica em relação à extinta União Soviética, a Darpa foi muito além do mero financiamento de pesquisa básica. A agência ajudou a direcionar recursos para áreas específicas, criando oportunidades e intermediando interações entre agentes públicos e privados envolvidos no processo de desenvolvimento tecnológico. A agência financiou a formação de departamentos de ciência da computação, apoiou startups com pesquisas iniciais, contribuiu para o desenvolvimento de semicondutores e supervisionou os primeiros estágios da internet, ajudando a estabelecer a indústria da informática nos anos 1960 e 1970.
Da mesma forma, o Programa de Pesquisa para a Inovação em Pequenas Empresas (SBIR) ajudou os negócios norte-americanos de base tecnológica. Criado em 1982, durante o governo de Ronald Reagan (1911-2004), a iniciativa estabeleceu um consórcio entre a Administração Norte-americana de Pequenas Empresas (SBA) e diferentes agências governamentais, dentre as quais os departamentos de Defesa e de Energia, e a Agência de Proteção Ambiental, que passaram a designar uma fração de seus recursos para o apoio de pequenas empresas inovadoras. O SBIR inspirou a criação do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, em 1997 (ver suplemento Pipe FAPESP, de dezembro de 2017).
Ainda é cedo para dizer se e quando o Endless Frontier Act será aprovado no Congresso. Segundo Hourihan, “há desacordos em relação ao texto do projeto na Câmara e no Senado, e é difícil prever como eles vão resolver isso”. O diretor da AAAS lembra, porém, que mesmo nos anos de governo Trump o Congresso norte-americano não deixou reduzir o orçamento para CT&I. “Agora, ele parece mais focado em investir em P&D para garantir a competitividade dos Estados Unidos, em sintonia com Biden”, afirma. “Tudo indica que o governo está se preparando para moldar um novo mercado a fim de impulsionar a inovação em áreas estratégicas”, conclui Melo.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.
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