De Marcos Pivetta Via Pesquisa FAPESP
Descobertos em 1936 em observações da radiação cósmica, os múons são partículas elementares muito similares aos elétrons, mas com uma massa 207 vezes maior e um tempo de vida de meros 2,2 milionésimos de segundo. Apesar de conhecidos há 85 anos, tornaram-se o centro das atenções dos físicos de partículas nos últimos meses devido a anomalias aparentemente detectadas em dois grandes experimentos internacionais de natureza distinta. Em um dos trabalhos, realizado no Grande Colisor de Hádrons (LHC), o maior acelerador de partículas do mundo, localizado no Centro Europeu para Pesquisas Nucleares (Cern), os múons se formaram a uma taxa diferente da dos elétrons como resultado da desintegração de partículas mais pesadas. Segundo a teoria amplamente aceita pelos físicos, as duas partículas deveriam ser produzidas na mesma proporção. No outro estudo, conduzido no acelerador do Fermilab, em Chicago, nos Estados Unidos, os múons apresentaram um nível elevado de magnetismo, maior do que o previsto.
Ambos os registros parecem contrariar as previsões do chamado Modelo Padrão, a teoria dominante na física que, há meio século, explica as interações entre as forças conhecidas, com exceção da gravidade, e as partículas constituintes da matéria. Quando há uma possibilidade robusta de que esse tipo de discrepância seja um fenômeno real, e não um erro de medição ou uma flutuação estatística, os físicos se perguntam se estão diante de uma descoberta que torna necessária uma revisão do modelo para dar conta de algo não previsto, como uma nova força ou partícula até agora desconhecida, talvez decorrente de algum fenômeno quântico ignorado. Não é a primeira vez que o modelo é posto à prova. Os neutrinos, partículas sem carga elétrica extremamente abundantes no Universo, não deveriam apresentar massa, segundo o modelo. Mas hoje se sabe que eles têm alguma massa, ainda que muito pequena. Outras questões não explicadas pela teoria são a existência da matéria escura e da energia escura, os dois componentes mais abundantes do Cosmos, e a aparente predominância da matéria sobre a antimatéria.
Os múons passaram a ser alvo de discussões recentes entre os físicos quando, em março, o experimento LHCb – um dos quatro grandes projetos realizados no Cern, que fica nos arredores de Genebra, na fronteira da Suíça com a França – divulgou novos resultados. Em artigo disponibilizado como preprint, ainda não revisado por pares nem aceito para publicação em um periódico científico, os membros da colaboração científica relatam que o decaimento de partículas originárias de colisões de prótons no interior do acelerador levaram à formação de 15% menos múons do que elétrons. Tecnicamente, essa discrepância é descrita como uma violação da “universalidade do sabor do lépton”, uma das previsões do Modelo Padrão.
Os léptons são partículas sem interação forte com spin 1/2. O spin é uma propriedade intrínseca de partículas subatômicas que está associada à interação com campos magnéticos. Os tipos (ou sabores, no jargão da área) de léptons conhecidos são os elétrons, os múons, os taus e as três formas distintas de neutrinos. “O conceito de universalidade de sabor dos léptons quer dizer que todos os processos que levam à formação de partículas desse tipo, como os elétrons e os múons, devem ocorrer na mesma proporção”, explica o físico experimental brasileiro Rafael Silva Coutinho, da Universidade de Zurique e membro da colaboração internacional do LHCb. “Se nosso experimento estiver correto, precisaremos de algo novo na física para explicar esse resultado.” O LHCb é uma colaboração internacional que conta com cerca de 1.500 membros de 89 instituições de 19 países. Doze pesquisadores brasileiros de três instituições nacionais – a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) – fazem parte do experimento.
De forma simplificada, o experimento consiste em promover a colisão de feixes de prótons que são acelerados até atingir quase a velocidade da luz e observar quais partículas se formam após os choques. Uma dessas partículas são os mésons B. De vida instável, eles decaem em frações de segundos em outras partículas. Ao se desintegrar, os mésons B dão origem a múons e elétrons, entre outras partículas. Detectores instalados no acelerador de partículas flagram a intensidade de formação das partículas. Segundo o Modelo Padrão, o mesmo número de elétrons e múons deveria resultar de tal processo. Na prática, o experimento encontrou 15% menos múons do que elétrons. “Múons são relativamente fáceis de serem detectados”, explica o físico Murilo Rangel, da UFRJ, que participa do LHCb. “Nossa medida dificilmente não estará correta.”
O estudo com múons feito no Fermilab foi publicado em abril no periódico Physical Review Letters e faz parte do experimento Muon g-2, uma colaboração internacional que reúne 200 pesquisadores de 35 instituições de sete países, sem a participação de instituições brasileiras. Seu objetivo é refazer e refinar um trabalho que, em 2001, mediu pela primeira vez no Laboratório Nacional de Brookhaven, no estado norte-americano de Nova York, um excesso de magnetismo dos múons. O principal componente do equipamento usado em Brookhaven, um anel magnético supercondutor de 15 metros de diâmetro, foi reinstalado no Fermilab para que o experimento pudesse ser realizado novamente. A partir da colisão de prótons, o Muon g-2 produz um feixe de múons que circula quase à velocidade da luz pelo anel e interage no vácuo com grandes campos magnéticos. Os físicos então medem o chamado momento magnético dos múons, uma propriedade que faz com que essas partículas girem e se comportem como uma pequena barra de ímã. Esse parâmetro é calculado pelo fator g, um valor muito próximo, mas superior a 2 (daí o nome do experimento Muon g-2).
O experimento no Fermilab mediu esse parâmetro e encontrou, como ocorrera em Brookhaven, valores mais elevados para o momento magnético dos múons. “O que medimos reflete as interações dos múons com tudo o que existe no Universo, mas, quando os teóricos fazem esse cálculo, usando todas as forças e partículas do Modelo Padrão, não se obtém a mesma resposta”, disse, em comunicado de imprensa, a física Renee Fatemi, da Universidade do Kentucky, Estados Unidos, coordenadora das simulações do Muon g-2. Embora pareça um contrassenso para o leigo, o vácuo não é sinônimo de um espaço vazio na física quântica. Ele é povoado por partículas virtuais, que, devido a flutuações do mundo quântico, aparecem e desaparecem aos pares quase instantaneamente e são difíceis de detectar. Hipotéticas interações dessas partículas virtuais com os múons poderiam ser fundamentais para entender as duas anomalias.
Por ora, não é possível saber que forças ou partículas desconhecidas poderiam explicar as duas medidas que não batem com as previsões do Modelo Padrão. “Essas possíveis anomalias podem ou não estar correlacionadas e serem decorrentes de um mesmo ou de vários fenômenos quânticos”, comenta a física Renata Zukanovich Funchal, da Universidade de São Paulo (USP), que estuda teorias que possam ir além do Modelo Padrão por meio de projeto financiado pela FAPESP. Partículas não virtuais, mas ainda não descobertas, também poderiam estar por trás das violações ao Modelo Padrão protagonizadas pelos múons. “Partículas hipotéticas, como os leptoquarks e os bóson Z′ podem ser candidatas a explicar essas anomalias se sua existência for de fato confirmada no futuro”, comenta o físico teórico brasileiro Olcyr Sumensari, da Universidade Paris-Saclay.
As duas aparentes violações do Modelo Padrão, tanto a do LHCb como a do Fermilab, já tinham sido detectadas em experimentos do passado, mas com um grau de certeza estatística relativamente baixo. Agora as novas medições são mais robustas, embora ainda não tenham atingido o grau de precisão considerado o padrão-ouro da física. Normalmente, quando um dado apresenta uma precisão de 5 sigma ou 5 desvios-padrão, os físicos dizem que há uma descoberta. Nesse caso, a probabilidade de haver erro é de 0,00006%, algo como 1 em 3,5 milhões. O trabalho no LHCb tem um desvio-padrão de 3,1 sigma, pouco mais de 0,2% de probabilidade de estar errado. Registros com esse nível de confiabilidade são considerados como uma evidência, mas não ainda uma descoberta. A medição da anomalia magnética observada nos múons, quando são levados em conta os dados produzidos no Fermilab e em Brookhaven, apresenta um grau de precisão ainda maior, de 4,2 sigma, isto é, uma chance em 40 mil de estar equivocada.
À medida que o LHCb e o Muon g-2 avancem nos estudos nos próximos anos, as dúvidas sobre se as duas anomalias são reais ou fruto de erros de medição devem ser dissipadas. No momento, o acelerador do Cern está parado e só deve retomar o funcionamento em abril de 2022. Antes disso, o Fermilab talvez gere alguma notícia, pois mais de 90% dos dados produzidos no experimento de Chicago com múons ainda não foram analisados. “Também é possível que nos próximos meses o Belle II, experimento japonês concorrente do LHCb, divulgue alguma medição”, comenta Zukanovich.
Artigos científicos
AAJI, R. et al. Test of lepton universality in beauty-quark decays. arXiv preprint. 22 mar. 2021.
ABI, B. et al. Measurement of the positive muon anomalous magnetic moment to 0.46 ppm. Physical Review Letters. 7 abr. 2021.
Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.