No âmago do átomo

Texto de Carlos Fioravanti
Via Pesquisa FAPESP

Choque de partículas registrado no Cern, em Genebra, em 2011. As duas linhas vermelhas são múons, estudados por Tiomno. As linhas laranja são sinais de outras partículas formadas na colisão

Thomas McCauley / CMS Collaboration

Quando embarcou para os Estados Unidos, em 1948, o carioca e descendente de judeus russos Jayme Tiomno (1920-2011) tinha concluído o curso de física na Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil, que originou a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e estudado durante um ano na pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP). Era um dos poucos passageiros de um Panair e viveu horas de apreensão: o avião ia trocar o motor, cuja garantia havia terminado, e todos a bordo estavam preparados para saltar de paraquedas a qualquer momento.

Uma vez nos Estados Unidos, o trabalho correu bem: seu orientador na Universidade de Princeton, o físico norte-americano John Wheeler (1911-2008), conhecia o trabalho de outros dois brasileiros que se destacavam na física de partículas, Mario Schenberg (1914-1990) e José Leite Lopes (1918-2006), que haviam estudado ali antes dele. Em Princeton, Tiomno conheceu grandes físicos, como o húngaro Eugene Wigner (1902-1995) e o chinês Chen Ning Yang, que depois ganharam o Nobel de Física.

Divulgação ABC O físico teórico Jayme TiomnoDivulgação ABC

Foi ali que ele fez um de seus principais trabalhos científicos: propôs a unificação da então chamada interação universal de Fermi, atualmente conhecida como interação fraca, a força que regula a interação entre as partículas do núcleo atômico.

No final dos anos 1940, depois de décadas em que apenas três partículas – nêutrons, prótons e elétrons – pareciam dar conta da constituição do átomo, os experimentos com raios cósmicos revelaram outras partículas elementares, com massas, cargas elétricas e propriedades diferentes. Havia três tipos de transformação: a primeira era o chamado decaimento beta, que consistia na decomposição de duas partículas, nêutron e próton, respectivamente em próton, elétron e antineutrino ou em nêutron, pósitron e neutrino do elétron; a segunda tratava do méson-pi – a partícula com uma vida média de 26 nanossegundos de cuja descoberta o também físico brasileiro César Lattes (1924-2005) participou – e descrevia sua desintegração em múons e neutrinos do múon; a terceira era o decaimento de uma partícula com uma massa 200 vezes maior que a do elétron, o múon, em um elétron, um neutrino do elétron e um neutrino do múon.

Arquivo Jayme Tiomno Jayme Tiomno em seu quarto em Princeton, em 1948Arquivo Jayme Tiomno

“Naquela época”, explica o físico Ignacio Bediaga, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), “os três decaimentos eram vistos como fenômenos independentes, com origens diferentes”. Tiomno propôs a unificação das três reações que ocorriam no núcleo atômico e demonstrou matematicamente que resultavam de interações com a força fraca, mediadas, como se descobriu experimentalmente somente em 1983, por partículas bóson W eletricamente carregadas. Expressa em um diagrama conhecido como triângulo de Tiomno-Wheeler em um artigo de 1949 na revista científica Reviews of Modern Physics, a proposta de unificação dos decaimentos reforçava uma ideia também nova para a época.

“O triângulo sintetiza o estado da arte da física na época e hoje é um conceito bem estabelecido”, comenta o físico e historiador da ciência Olival Freire Junior, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Anos depois, quando a autoria do diagrama se perdeu, Wheeler reclamou e valorizou o trabalho do ex-aluno.

O físico italiano Giorgio Salvini (1920-2015) lembrou-se daqueles tempos de Princeton em 1993, ao visitar o CBPF e insistir com Bediaga, que tinha feito o doutorado na Itália, para falar com Tiomno. Não conseguiu, porque o ex-colega estava doente. “Ele era o único que resolvia as listas de exercícios em 15 minutos e depois passava para a gente copiar, não era como os norte-americanos”, justificou Salvini, que foi ministro da Ciência na Itália de 1995 a 1996.

Arquivo Jayme Tiomno Desenho feito por Wheeler para mostrar como Tiomno e ele, em 1949, uniram as transformações entre três pares de partículas: nêutron e próton (N e P); elétron (e) e neutrino do elétron (v); e múon negativo (μ) e múon neutrino (μ0)Arquivo Jayme Tiomno

No CBPF
Depois de voltar para o Brasil, em 1950, Tiomno trabalhou como assistente de pesquisa na USP e reencontrou a física experimental Elisa Frota Pessoa (nascida Elisa Esther Habbema de Maia, 1921-2018). Elisa, que viria a ser sua esposa, tinha sido casada com o biólogo Oswaldo Frota Pessoa (1917-2010). Depois de 18 meses, ele se demitiu da USP para voltar ao Rio, onde trabalhou como professor em tempo parcial na Faculdade Nacional de Filosofia.

Em 1952, começou a trabalhar no CBPF, criado dois anos antes, com seu apoio, e juntando-se a Elisa, já sua mulher, que estava lá desde o início. Em uma entrevista concedida em 1977 a pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, quando também contou do avião que o levou aos Estados Unidos, Tiomno lembrou que o CBPF foi criado porque, “no Brasil, com exceção de São Paulo, todas as universidades brasileiras criaram o máximo de dificuldades à pesquisa”, principalmente para quem tinha estudado em outros países.

Arquivo Jayme Tiomno Em Princeton, 1949: César Lattes, Hideki Yukawa e Walter Schutzer (em pé, a partir da esq.); Hervásio de Carvalho, José Leite Lopes e Jayme Tiomno (abaixados)Arquivo Jayme Tiomno

No CBPF, Tiomno explorou outra ideia de sua tese de doutorado, a busca de uma equação matemática que pudesse explicar as interações fracas. Ele selecionou duas abordagens possíveis, apostou em uma delas, mas a outra é que se mostrou consistente com os experimentos nos aceleradores de partículas. Em 2003, Freire ouviu Tiomno reconhecer que tinha esquecido das análises de desintegração do méson-pi feitas por Elisa e pela física Neusa Margem no próprio CBPF que indicariam que a segunda abordagem matemática é que estaria certa. “Ele preferiu usar os resultados mais recentes de outro pesquisador, mas que estavam errados”, comenta o historiador da ciência Alfredo Tolmasquim, do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. Sobrinho do físico carioca, Tolmasquim espera publicar em junho a biografia Jayme Tiomno – A life for physics, a life for Brazil (Springer), escrita com o físico alemão William Brewer, pesquisador aposentado da Universidade Livre de Berlim que viveu 10 anos com Sônia, enteada do biografado.

“Tiomno faz parte de uma geração de pesquisadores brasileiros, como Lattes, Schenberg e Leite Lopes, que conviveu com grandes cientistas e estabeleceu uma concepção de trabalho que colocou a física do país em um padrão internacional de qualidade”, diz Bediaga, que escreveu cinco artigos científicos com Tiomno. “Ele cobrava muito os estudantes para buscarem coisas novas e ousadas, trabalhar muito e brigar por suas ideias.”

Arquivo Jayme Tiomno Tiomno ao receber o Prêmio Moinho Santista, em 1957Arquivo Jayme Tiomno

Em 1960, em uma conferência de física de alta energia nos Estados Unidos, Tiomno propôs a existência de um novo típo de méson, que deveria resultar da desintegração de outra partícula, o bárion. Foi o primeiro estudo de transformação de uma partícula em outras, mais estáveis, a chamada ressonância.

Logo depois, em um acelerador da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, foi descoberto o méson vetorial K*(890), com massa próxima à que ele tinha sugerido. Segundo Bediaga, a partícula proposta por Tiomno seria mais próxima do méson kappa (800), identificada em 2002.

Arquivo Jayme Tiomno Carta de 1987 de Wheeler indicando Tiomno para receber o Prêmio Nobel, o que não se concretizouArquivo Jayme Tiomno

De volta a Princeton
Em 1965, Tiomno se mudou para a Universidade de Brasília (UnB), mas logo se demitiu, junto com mais de 220 professores, que não aceitaram as intervenções do governo militar, e passou um ano no Centro Internacional de Física Teórica, em Trieste, na Itália. Estava na USP, como professor concursado, em 1968, quando ele e Elisa foram incluídos em uma lista de professores universitários simpatizantes da esquerda. No ano seguinte, com o Ato Institucional nº 5, foram afastados da universidade com muitos outros professores, como Schenberg e Leite Lopes e os sociólogos Florestan Fernandes (1920-1995) e Fernando Henrique Cardoso.

“Ninguém entendeu por que ele entrou na lista de cassados”, diz Tolmasquim. “Tiomno foi um crítico da forma como foi implementada a reforma universitária de 1968, mas era muito reservado e nunca teve atuação político-partidária.” Segundo o historiador, a hipótese mais aceitável é a que as acusações de que ele faria parte de um grupo de comunistas – depois desmentidas – foram resgatadas e aproveitadas pelos órgãos de repressão política em São Paulo.

Tiomno voltou para o CBPF e também foi demitido. O resultado desse episódio foi uma depressão profunda, que o impedia de avaliar os convites para trabalhar nos Estados Unidos. Wheeler, que fez um dos convites, insistiu e, por fim, em meados de 1971, Tiomno e sua mulher foram para Princeton. Voltaram em 1972 para ingressar na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Com a lei da anistia de 1979, Tiomno e Elisa retornaram ao CBPF.

Arquivo Jayme Tiomno Tiomno e Elisa Frota Pessoa na década de 1990Arquivo Jayme Tiomno

Depois da segunda temporada em Princeton, o físico começou a trabalhar em cosmologia. “Era uma área ainda com poucos dados experimentais e mais especulativa que a física teórica”, afirma Felipe Tovar Falciano, do CBPF. Na década de 1980, ele se empenhou em promover a participação de pesquisadores brasileiros em projetos internacionais, como ele e outros físicos haviam feito décadas atrás, antes de essa atividade ter sido abandonada durante o governo militar (1964-1985).

Tiomno viveu no Rio até morrer, aos 90 anos. Físicos que ele orientou ou com quem conviveu trabalham no CBPF e em universidades do país e do exterior.

 

Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

Conteúdo Republicado.

Egídio Mariano

Sou pesquisador independente com formação bacharel em Letras, atuando como escritor, editor e produtor de conteúdos web, especializado em Planejamento e Gestão Estratégica, com Docência ao Ensino Superior e Educação à distância (EAD). Sou autor de "Estados de civilidade: uma história sobre tecnologias" (artigos); "Cartilha de Jack & Janis - Uma sátira da vida conjugal moderna" (novela) entre outras publicações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

© Todo Direito Autoral Reservado 2017 - 2024 | Egídio Mariano