Cosmonauta na criação

Intérpretes culturais

Cosmonauta na criação

Carregar um sentido de ser autônomo na criação, definindo escolhas intuitivas a princípio, mas com o decorrer da experiência de um aprendizado formulado, tornando-se capaz de se compreender em seu próprio destino, como cosmonauta na criação.

Destacar algum conhecimento numa linha cronológica de eventos de que se possa restar documentos escritos ou partes interpretativas constitutivas de outras formas de expressão de um pensamento temporal datado é, sempre, algum exercício de ficção especulativa que nos põe a ser um demiurgo como nos dizeres de Platão, quando o filósofo do século V. a. C. definia tal papel a partir da ideia de um artesão divino ou a de um princípio organizador do universo que, sem criar de fato a realidade, modela e organiza a matéria caótica preexistente através da imitação de modelos eternos e perfeitos**. [T]

E foi a partir de uma base principiológica que me coloquei à escrita de uma hipótese a respeito dos artífices e de seus instrumentos, entre outros objetos de ofício, criando-se, assim, pela hipótese formulada, artesfatos.com como um blog suporte para essa pesquisa.

Então, pesquiso a ancestralidade dessa condição de artífice da palavra, originalmente tal qual já os escribas dominavam através dos hieróglifos inscritos durante o Antigo Egito, embora fosse maior o uso da comunicação oral, feita de maneira repetida sobre alguns conhecimentos, a fim de que esses aprendizados ficassem, assim, memorizados, sendo a memorização uma prática importante de um escriba, onde entonação, vibração e ritmo descreviam a arte de seu domínio sobre uma realidade tangível, obtendo-se destreza quanto ao significado que, se ampliando, ampliou a capacidade humana de articular abstrações no uso do seu intelecto para chegar a alguns padrões especulativos, dos quais surgiram as hipóteses produzidas a um propósito específico que, sob determinados métodos, resultaram nos meios de produzir significado como evento muito anterior às civilizações, no que se supõe, entre outras práticas ancestrais, as que tratam dos métodos adivinhatórios.

Sabe-se que a cópia e a memorização de textos, como a “Sátira dos ofícios”, era parte importante do processo de formação do aprendiz de escrevinhador, cujo início se dava aos quatro anos de idade e só finalizava aos dezesseis. O aprendizado da escrita era lento e servia apenas para expressar uma língua literária, arcaica, diferente da linguagem falada. Os métodos de ensino, de um empirismo sofrido, compreendiam dois ciclos de estudo. O primeiro, consistia na memorização, pela repetição, de listas de hieróglifos, numerados e classificados na categoria, juntamente com os seus significados. Depois, os jovens passavam aos exercícios de cópias de textos religiosos: as rezas a Thot, as Lições de Sabedoria (…) A rotina dos estudos, que tinha por objetivo a memorização dessas lições pelos aprendizes, era bastante rígida, impedindo o jovem de folgar em dias festivos. Sabe-se disso pelas análises feitas em diversos papiros literários nos quais o aluno anotava, todos os dias, o trabalho que fazia, na maioria exercícios de caligrafia, corrigidos pelo professor: até os signos malfeitos e as faltas de ortografia encontram-se assinalados com tinta vermelha[1]+[2]

Até descobrir John Anthony West e seu “A Serpente Cósmica: A Sabedoria Iniciática do Antigo Egito Revelada”, um dos livros citados de modo recorrente, sobretudo consultado para fundamentar uma trajetória de pesquisa para esse blog, foi o livro de Jared Diamond, cujo título “Armas, Germes, e Aço” sintetiza uma linha de um raciocínio melhor relacionada às transformações tecnológicas humanas, isso do meu ponto de vista, ou mais precisamente aquelas que ocorreram nos últimos doze mil anos. Diamond, sobretudo no capítulo “A História dos que têm, dos que não têm” nos revela uma “Revolução Agrícola” como um fator diferencial tecnológico que foi capaz de sobrepujar, ao cabo de milênios, um modo de vida nômade e tribal que já existia como forma de organização humana mais primitiva havia centenas de milhares de anos, uma forma de organização que, em grande parte, dependia das paisagens e de como o ser humano se integrava a elas, adaptando o seu comportamento em relação aos meios necessários de sua sobrevivência. Na sequência do mesmo capítulo, Diamond cita quais plantas foram domesticadas entre 9000 e 5000 anos a. C., para, então, concluir que a domesticação de plantas e de animais nesse período representaram bem mais do que muita comida e populações mais numerosas. Representaram, na visão de Diamond, um pré-requisito para o desenvolvimento das sociedades sedentárias, de um modo de vida que possibilitou a criação de impérios, quando a alfabetização e o uso de armas mais sofisticadas, entrando na Era dos Metais, incluía, também, os germes de que se veriam vítimas algumas das populações que se  aglomeravam em torno da produção excedente, entre as quais se desenvolveram as doenças contagiosas, sendo um dos principais vínculos entre produção de alimentos e conquista de domínios, uma vez disseminadas as doenças entre outros povos não sedentários.

Tese, aliás, compartilhada por um outro autor, também sempre lembrado por aqui, que é Yuval Noah Harari, professor em História e autor de best-sellers “Sapiens: Uma breve história da humanidade”, obra em que me pauto para descrever o sentido de tecnologia de que me sirvo no livro “Estados de civilidade: uma história sobre tecnologias” principalmente quando Harari entende a Revolução Cognitiva e Revolução Agrícola como as duas das mais destacadas transformações tecnológicas em milhares e milhares de anos da espécie Homo sapiens, dentro de um “lapso” de tempo em que restou somente Homo sapiens sapiens no gênero Homo.

Em “Estados de civilidade: uma história sobre tecnologias” dedico especialmente a segunda parte ao tema dos padrões necessários às civilizações, porque observei, também, a importância fundamental da Revolução Agrícola em relação ao comportamento humano e seu habitat, já que, então, esse indivíduo-coletivo estava inserido em um espaço que podia ser moldado pela prática de suas atividades relacionadas ao modo de vida sedentário, tal qual moldasse o barro nos vasos cerâmicos e, desse modo, num meio de vida que dependeria menos de deslocamentos e mais da elaboração do espaço e do seu aproveitamento para abrigo, alimentação e habitação.

Então, depois da Revolução Cognitiva, determinante a um raciocínio de preservação da espécie por comparações das experiências em forma de aprendizados feitos em grupos humanos, verifica-se uma capacidade de o ser humano se manter munido com alimento e com os meios de produzi-lo de modo a não ficar mais ao revés da sorte da caça e da coleta, sendo esse um modo de vida nômade que começa a dar sinais de extinção até o terceiro milênio a. C.

Um fio condutor

Grupos humanos descentralizados existiam em grande número antes de 3000 a.C., quando começam a ser substituídos por uma hierarquia centralizada, controlada por governantes “todo-poderosos”, surgindo, também, palácios reais cercados por sociedades necessárias a uma classe de burocratas, escribas e mercadores, uma sociedade que começa a ser urbana, organizada, muitas vezes, em razão dos seus artífices, ocupando regularmente as mesmas referências, marcos dentro das quais os habitantes, de modo geral, já viviam em casas feitas com tijolos de terra local, gesso de lama e portas de madeira, num conjunto de abrigo mínimo que era preciso uma mão de obra dedicada à gestão, também, de maiores projetos, como o de rega e o de construção tumular e do cultivar a terra.

Penso que no período anterior, no Paleolítico, existisse uma maior prevalência de um instinto de sobrevivência como uma condicionante para estar em grupo, e essa condição necessária se tornou determinante para o desenvolvimento de numerosos grupos humanos, muitos dos quais se destacavam com algo preconizado, ou seja, numa intuição particular relacionada a um estado de mistério revelado a quem compreendesse uma linguagem ritualística de se entender em contato com a criação, dentro do que seria um “sobre-estado” de uma consciência individual-coletiva na relação do que se pode chamar de “espírito”, invocando, assim, o lugar de alguns poderes xamânicos, entre os quais, o de observar os elementos e com isso profetizar futuros de que ainda se possui pouco conhecimento, mas que se adivinha pelos astros e pelo contato com o “mundo dos espíritos”, vivenciando-se uma capacidade particular de profecia ou mesmo o de cura que caberia a um médico como a um mago, a um feiticeiro, a um curandeiro, a um bruxo, a um pajé, pois que todos esses são expressões tecnológicas de um mesmo entendimento arcaico ao ser humano, dos quais arcanos, entre os egípcios, usufruíram de um amplo conhecimento moral do que são, entre outros nomes, os correspondentes ao uso, desde os primórdios, da observação de relações causais e possíveis, baseadas em curas no aspecto prático de quais resultados alcançados pela visão adquirida sobre o objeto, que é a cura de estado doentio em que se vê refletido os limites morais e as demais abstrações que ocorrem pelos próprios saberes do acometido de mal a seu respeito.

A história de uma ilustração gráfica* marca uma intenção de conhecimento sobre o que se diria possível à interpretação. Até o Neolítico, penso, o matriarcado como relação de poder dentro dos grupos humanos, provavelmente, orientava boa parte das populações nômades de coletores-caçadores. Penso que a questão quanto à vida mística, ou gnóstica, ou de natureza xamânica, tenha sido durante todo o período do Paleolítico uma só forma potencial primária de comunicação com além vida, daí porque minhas suspeitas se concentram no Antigo Egito, já que lá me parece ter sido o mais antigo berço do hábito cultural tumular.

A vivência mística-gnóstica-xamânica-intuitiva (agora um pouco mais sofisticada pelas sugestões possíveis no plano dos eventos da criação) figurava numa ideia de pessoa que se comunica com forças da natureza, do além, e por isso, imbuída de um espírito profético, adivinho, já que durante todo período do Paleolítico tal espírito foi possível aos agrupamentos humanos, uma vez que se vivia pelo matriarcado, um instintivo para a organização da coleta e da caça, cabendo à mulher, muitas vezes, alguns dos necessários conhecimentos da cura relacionada às plantas, entre outros aspectos em que teria ela relevância de saberes e um domínio de seu espaço como mulher relacionada à comunidade.

Mas qual fosse o “papel xamânico” desempenhado, fosse por homem ou fosse por uma mulher, nesse período, era uma só forma de desenvolvimento de uma consciência sobre a “arte”, a “arte” assim chamada por Platão dez mil anos depois, e como ciência pelos filósofos que, então, vão se ocupar com os estudos estéticos a respeito da técnica relacionada à arte do ensino como, por exemplo, numa discussão aristotélica pelas esferas dos conhecimentos: os campos de uma consciência do abstrato raciocínio lógico e uma argumentativa análise quanto aos eventos possíveis, sobretudo, através do discurso pautado pela experiência, por dados empíricos e classificáveis quanto a algum entendimento específico.

Penso que, com a Revolução Agrícola, a “arte”, então técnica e didática relativa à inscrição tumular, tenha se tornado um ofício de tal modo necessário que se torna uma atividade específica dentro dos futuros reinados. O cargo de escriba, separado do aspecto místico gnóstico de que se ocuparam os sacerdotes, chamados pelos egípcios de hierofantes[3], ficaram com as práticas rituais, com os domínios das finalidades dos ritos sobre os símbolos-abstratos: um poder técnico sobre um domínio de conhecimento organizado, compartilhado com os pares.

A religião, em seu berço, estava interligada com a política que governaria as cidades-Estados da Antiguidade, e para essas, se supõe, os sacerdotes fossem parte de uma “casta” de instrutores de uma lei sagrada, e transmitiam os textos sapienciais de modo que houvesse um entendimento “puro”, tal qual uma existência purificada pela transmutação dos hábitos, sobretudo, que se dariam religiosos aos interesses das necessidades de seus tempos, quando, então, surgem os primeiros trabalhos didáticos compostos por máximas e preceitos para os comportamentos de um escriba a quem, por exemplo, competiria o bom hábito da discrição.

Por outro lado, antes disso, a religião, na Pré-História, é mais uma especialização das práticas organizadas segundo as atividades dos caçadores, dos coletores de vegetais, dos pescadores ou dos primeiros agricultores, quando muitas das religiões ainda se desenvolviam em ambientes restritos de sociedades tribais nas quais as forças naturais exerciam um impacto à sobrevivência, como também à forma pela qual se confirmava algum estado religioso que influísse no cotidiano.

Na próxima postagem a Arte Mística e a Arte Estética – os ritos antigos como efeito comunicativo ritual com suporte à estética de uma fruição tal como a beleza.

Para ir além:

*Qualquer inscrição gráfica intencional.

** Conceito Platônico, com uso filosófico e como substantivo próprio em Timeu – Diálogos de Platão, 360 a.C.: de que há causa do universo de acordo com a exigência de que tudo que sofre transformação ou geração (genesis) sofre-a em virtude de uma causa. Diferente do deus cristão, o demiurgo não cria ex nihilo, mas a partir de um estado preexistente de caos, tentando fazer seu produto assemelhar-se ao modelo eterno das Formas, assim a atividade do demiurgo compreende observar as Formas,  desejar que tudo seja o melhor ou mais similar possível ao modelo eterno e perfeito. Platão descreve o demiurgo como uma figura neutra (não-dualista), indiferente ao bem ou ao mal, mas apesar de bom, sofre limitações na coordenação criativa do cosmos (não onipotente)

Em https://pt.wikipedia.org/wiki/Demiurgo

[T] = Transmutação, princípio de.

[1] citado de um ótimo trabalho em “Um outro mundo antigo” de MARGARET MARCHIORI BAKOS, p. 21 e 22. Em pdf, citado na Biblioteca de artesfatos.com e acessível AQUI    +

[2] https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/analise-de-tintas-preta-e-vermelha-revela-segredos-de-papiros-egipcios.phtml

[3] Hierofante: do grego Hierophantes, que significa literalmente “aquele que explica as coisas sagradas”. O revelador da ciência sagrada e chefe dos iniciados. Título pertencente aos mais elevados adeptos nos templos da antiguidade, que eram os mestres e preletores dos mistérios e os iniciadores nos grandes mistérios finais. O Hierofante representava o Demiurgo e explicava aos candidatos à iniciação os vários fenômenos da criação que se expunham para seu ensinamento. “Era o único expositor das doutrinas e arcanos esotéricos. Era proibido até pronunciar o seu nome diante de uma pessoa não iniciada. Residia no Oriente e levava, como símbolo de sua autoridade, um globo de ouro pendurado ao pescoço. Se o denominava também de Mistagogo”. De https://pt.wikipedia.org/wiki/Hierofante

 

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/papiro-de-1800-anos-revela-feitico-erotico-do-egito-antigo.phtml

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/paleta-de-pintura-de-pedra-com-5000-anos-desenterrada-na-turquia.phtml
 

https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/tratado-medico-do-antigo-egito-revela-conhecimentos-de-3600-anos-atras.phtml

 

 

Egídio Mariano

Sou pesquisador independente com formação bacharel em Letras, atuando como escritor, editor e produtor de conteúdos web, especializado em Planejamento e Gestão Estratégica, com Docência ao Ensino Superior e Educação à distância (EAD). Sou autor de "Estados de civilidade: uma história sobre tecnologias" (artigos); "Cartilha de Jack & Janis - Uma sátira da vida conjugal moderna" (novela) entre outras publicações.

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