Muito me impressionaram as primeiras linhas de dois recentes livros que adquiri, o primeiro deles é o que dá tema a esse artigo, outro já reforça a ideia que norteia minha pesquisa há anos, ambos tratando do aspecto de uma das tradições mais antigas que se tem registro, e que remonta à pré-história humana.
Antes, uma breve introdução: a palavra “tradição” vem do latim, “traditio”, “tradere” que significa “entregar”, “passar adiante”, e ocorre com o sentido mais próximo do original no meio jurídico, quando se trata da posse da coisa, daquele que por “tradição” está em poder do objeto.
Além disso, de maneira comum, a palavra “tradição” significa uma transmissão de costumes, esses relacionados a comportamentos, que estão ligados a memórias, e essas constituídas e formadas a partir de interpretações, tais como rumores, de crenças, de lendas, e das experiências das pessoas em suas comunidades culturais.
Portanto, quando tratar aqui das “tradições”, especifico que se aborda sobre o conceito delimitado acima, e, principalmente quanto à pesquisa desenvolvida, sobre os aspectos das doutrinas, dos valores, das visões de mundos, dos quais temos as origens das escolas de pensamento: as “tradições” formuladas por pensadores que se inserem com seus escritos nos estudos seculares.

A ideia de permanência pela entrega de um conhecimento que está impregnado da existência da vida de um portador revela o quanto a capacidade cognitiva diferenciou o ser humano, em seus primórdios, das demais espécies, as quais se diferenciaram de maneira delimitada pelos aspectos biológicos. Pensar, por exemplo, foi uma atividade de reflexão humana sobre o espaço em que se insere, muito provavelmente numa expressão de espelhamento da realidade ambiental na própria formação da psiquê humana. Não por acaso essa Revolução Cognitiva trouxe a condição de ser um humano também um arcabouço das experiências como se o mesmo fosse um registro vivo das transformações ambientais e sociais a que estava sujeito em razão de sua fé, visão de mundo ou doutrina de crença religiosa.
Antes, contudo, é da oralidade da comunicação que repercute aquele primeiro sinal “ígneo” com que podemos chamar a abstração do reflexo de um primeiro pensamento, o “co-ígneo” do que temos como conceito base de “cognição” para esse estudo, elabora a ideia de uma relação comparativa em que há percepção de “dentro”, o “eu” interno ao sujeito do pensamento, e a percepção externa a esse sujeito em um mundo, ou o “outro”, porque haveria de ser um semelhante e da espécie, embora podendo ser qualquer forma de interação intersubjetiva, até mesmo ligada a um animal, lembrando da proximidade desse homem primitivo a seu habitat de existência disputada com outros seres, dentro de um aspecto de sobrevivência.

Como disse no início desse artigo, tenho feito alguns achados em termos de livros que me chegam às mãos. “A Árvore do Êxtase”, por exemplo, coube como uma luva a necessidade de minhas leituras sobre questões “arcaicas” da natureza humana quando nem bem existiam delimitações precisas entre a realidade espacial e a realidade intersubjetiva humana, porque trata especificamente de um fenômeno ímpar à evolução biológica da vida sobre a Terra, e essa estava impregnada de uma magia sexual.
Pelo menos é isso acima que se revela às primeiras páginas da edição brasileira de 1994, da autora Dolores Ashcroft-Nowicki, a “A Árvore do Êxtase: Rituais de Magia Sexual”, com tradução de Roberto B. O. Goldkorn. Suas particularidades quanto ao tema, da edição gráfica e das ilustrações, demonstram também o cuidado de uma bem acabada edição da Bertrand Brasil S.A..
Do prefácio escrito pelo tradutor, se destaca de que a autora é adepta da Velha Religião (supondo eu da Tradição das Anciãs), e que seus ensinamentos são com base nas experiências e das práticas dos ritos na Arte. Segue, na mesma linha, o segundo livro que adquiri, embora devo tratar dele a seu tempo.
E, finalmente, dos pontos iniciais que mais me chamaram a atenção logo que comecei a o ler, ganha destaque, da primeira parte, capítulo 1, o trecho em que se afirma, “o sexo é tão velho quanto as primeiras formas de vida, tão velho quanto a galáxia da qual somos uma diminuta parte”. E o que pode parecer trivial de início passa a ser mais interessante quando pensamos que se trata, na verdade, de um princípio relacionado à própria existência da vida, pois é parte da substância imaterial de transmitir a genética a uma experiência de vida que trata das formas no mundo desde a ideia de um barro mítico.

De acordo com a autora, o sexo para as espécies funcionou como elemento mágico da transformação das formas pelas quais passavam geração à geração os seres vivos. Não seria de se estranhar que, nesse sentido, tenhamos as origens de religiões ligadas à crença da reencarnação, isso nas diferentes vertentes que lidam com o conceito de uma vida além morte. Mas, em “Rituais pré-históricos e a Grande Mãe”, a autora entende que o instinto veio com a espécie, ou seja, um vínculo natural que nos coloca à base de existência do que sentimos, quando sentimos: se fome, a vontade de se saciar com o alimento, se sede, a necessidade da água.
Diz, também, da ideia de “tempos imemoriais” que refletem as concepções de crenças que fazem a ponte entre a experiência do êxtase sexual, da religião e da magia, tratando esses três aspectos de fatores negligenciados na história da humanidade.
São desses “tempos imemoriais” que vem o artefato da “Vênus de Willendorf”, da qual a autora compreende um uso ritualístico sexual da peça pré-histórica. Observa ela, por exemplo, que o “estado” desse homem primitivo registrado em pinturas rupestres envolve o instinto relacionado ao ambiente, da caça à coleta, representações da realidade em que o ser humano está presente como consciência motora da existência de sua interpretação de mundo. Daí, portanto, somos transportados à hipótese da autora de que “O sexo e a religião não podem ser separados porque um tem suas raízes no outro, e deles emergiram os primeiros rituais mágicos”, explicando as necessidades das culturas pré-históricas, pelo próprio instinto sendo preservadas, a ponto de se entender a “fertilidade” como princípio motor da vida em sociedade, já que permitiria um estado de bem-estar maior da comunidade, inicialmente, tribal. A estatueta de “Vênus de Willendorf”, por exemplo, pode ter sido usada em rituais ligados à concepção, a fim de gerar vida, fosse no rebanho para os pastores, ou entre os silvícolas, como resultado de um mundo de abundância. É essa relação de significado entre o artefato e a crença nele reproduzida que chama a atenção durante a leitura do capítulo, um elo que envolvem o êxtase físico e mental que são evidentes na relação sexual em seu ápice, à concepção de um plano superior, de ordem divinatória no seu sentido ritual, inspirando-se a uma Deusa-Mãe.
Para essa humanidade primitiva, qualquer mulher ou homem que se encaixasse no seu conceito de ser ideal era visto mais do que humano e elevado à categoria de Deus encarnado. Uma mulher fértil com fartos seios e largos quadris, aumentados por tantas gerações sucessivas, deveria tornar-se ideal, uma cópia da Deusa-Mãe. Ela foi o protótipo da sacerdotisa da Deusa e, portanto, visto pela tribo como sua contraparte terrena.
ASHCROFT-NOWICKI, 1994; p. 24

BIBLIOGRAFIA DA OBRA:
ASHCROFT-NOWICKI, Dolores. “A Árvore do Êxtase: Rituais de Magia Sexual”; Trad. de Roberto B. O. Goldkorn. RJ: Bertrando Brasil, 1994.