Talvez como em nenhum outro momento da história humana conhecida um tema, como a morte, tenha se transformado em um principal eixo de uma cultura e de uma sociedade como ocorreu à cultura e à sociedade da Antiguidade egípcia, um interesse que se transforma em uma ciência que se fixa entre um conhecimento de natureza religiosa, e por isso espiritual, e a quase acadêmica prática científica pelo estudo desenvolvido quanto ao assunto.
Podemos chamar de profissionais dos templos os escribas e os sacerdotes que deram sustentação ao governo do faraó no Antigo Egito. E subjugar a certeza da morte com um pós-morte pode ter sido um raciocínio simples sobre compreender a vida em sociedade por tais profissionais que, tendo origens em castas sociais, estavam relacionados à realidade de estruturas das vivências tribais mais antigas.
Aliás, podemos aventar a ideia de que essas estruturas arcaicas da sociedade egípcia tinham, em função de suas crenças, um amplo horizonte de possibilidades existenciais relacionadas aos templos dedicados em que escribas e sacerdotes dedicavam-se aos seus deuses. E, por isso, tinham pesquisas de uma maior profundidade quanto aos termos de uma existência humana em que a maior parte da tecnologia poderia ser chamada de cognitiva. Afinal, a maior transformação iniciada pela consciência de humanidade se encontrava desperta há poucos milhares de anos.
Ou ainda, naquela região do mundo, entre o deserto líbio e o Estreito de Gibraltar, algo de especial acontecia por volta do terceiro milênio a.C., mas já tendo origens muito remotas na história da humanidade, como num primeiro eclipse de um tempo de uma mesma forma primitivo e altamente sofisticado em tecnologias, pois, como entendemos, o ser humano já havia domesticado alguns animais e se tornado sedentário nesse espaço transcorrido de dez milênios, constituindo assentamentos humanos que possibilitaram a produção em série de utensílios em cerâmica, como atesta a cultura de el-Omari, no Norte, e a cultura de Nagada I, no Sul do Nilo, entre o quinto e quarto milênio a.C. quando se desenvolve uma gama de atividades que “passam a adquirir um estatuto de subsistência econômica, especialmente a cerâmica, produção têxtil e metalurgia”, conforme podemos ler em A evolução da arquitectura tumular egípcia: da pré-História às pirâmides, de Eugénio José Castro Giesta, pela Universidade de Lisboa, página 03.
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Urnas e vasos são utensílios necessários a uma cultura doméstica, o que, aliás, é um espaço simbólico que se repete em qualquer sítio arqueológico estudado: o homem, no seu habitat, é um agente que se serve de meios para se resguardar de dificuldades que comprometam sua existência, por isso, a necessidade de conservar fontes de alimentos mais próximas ao seu habitat descreve um comportamento de hábitos sedentários que condiciona, também, sua visão de mundo: leva-lhe, o vasilhame, a ideia de ser instrumento para tal ser humano se expressar sob aspectos mais sofisticados de seu espírito e de seu conhecimento, sobretudo, no que diz respeito ao tema da morte como vimos em “Uma grafia para além vida”

Os egípcios da Antiguidade desenvolveram um sistema bastante detalhado no que diz respeito à morte. A morte era uma questão central na cultura egípcia. As denominadas pirâmides, as tumbas, as múmias, os objetos mortuários, os escritos funerários e o Livro dos Mortos, todos testemunham as atitudes perante a morte. O Livro dos Mortos traçava as formas de um amplo sistema mortuário. Esse sistema destinava-se a uma abordagem integrada que permitiria aos membros individuais pensar, sentir e agir em relação à morte de maneira considerada apropriada e eficiente (AISENBERG, 1983). A preocupação com a morte se refletia na arte, na religião e nas ciências dessa cultura.
Vestígios materiais fúnebres sobre a impactante revelação da morte à consciência da existência humana podem revelar as “batalhas“ enfrentadas pelos mortos em suas jornadas para o além vida, sendo que Textos dos Sarcófagos guardam encantamentos com os seus antecessores, os Textos das Pirâmides que tratam, além do pós-morte solar, de uma jornada com ênfase ao destino póstumo, descrito de forma pormenorizada com eventos de presenças hostis capazes de afetarem o morto em sua viagem final.
Em seu intento de garantir a imortalidade post mortem dos donos das tumbas, os Textos mesclavam tradições referentes a um destino póstumo estelar, um solar e um osiriano. Ao invés de serem consideradas contraditórias, a variedade de possibilidades aumentava as chances de se conseguir a imortalidade póstuma. A diversidade de explicações e abordagens sobre um tema é uma característica do pensamento egípcio
De Cosmologia e morte no Antigo Egito: o Tribunal de Osíris, de Thiago Henrique Pereira Ribeiro, acessível AQUI
As compilações de textos funerários, como os “Textos das Pirâmides” do Império Antigo (c. 2686-2160 a. C.), e o “Livro dos Mortos” do Império Novo, passando pelos “Textos dos Sarcófagos” do Império Médio (c. 2055-1650 a. C.), trazem alusões “a uma viagem que pressupunha uma elaborada “cartografia” do Além e, quase à semelhança de um guia medieval do peregrino, tinham como intuito guiar o viajante que percorria o mundo dos mortos para que chegasse ao seu destino em segurança”*, como práticas de crenças sobre a natureza da vida humana em ritos funerários a partir de um horizonte mítico que importava, acima de tudo, ser esclarecido ao morto em sua viagem, numa representação egípcia quanto à vida que se retrata por uma caminhada, em que “O próprio signo hieroglífico que significa “vida”, ankh, evoca a forma de uma sandália”.
- Ver também postagem “Dia dos mortos de antigas tradições“
Assim como deus Sol, Rá, o morto estabelecia-se a caminho de uma continuidade de si entre a sua morte e a existência da vida que a precede, de tal modo que, na mitologia:
O fratricídio de Osíris, o deus que personificava o bem e a ordem civilizadora, tinha subjacente a ideia de injustiça, e era esta noção que configurava a imagem egípcia da morte: a de um atentado que de modo algum se afigurava na ordem natural das coisas e que introduzia o estado de inércia e de letargia, típicos da morte, que interrompia a fluidez e o movimento característicos da vida. O cadáver distinguia-se do corpo pelo facto de ter sido alvo de um crime que pusera termo à ação conectiva do coração, o principal garante da vida. Com a morte, o coração parava, pondo assim um fim à caminhada vital*
Bibliografia
*SOUSA, Rogério P. N. F. O Regresso à Origem: O tema da viagem na iconografia funerária egípcia da XXI dinastia. Cultura, Espaço e Memória, n. 1, 2010, p. 157-176. Disponível em:
< http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8838.pdf >. Acesso em: 10 agosto 2019.
Para ir além
A “PORTA” COMO VEÍCULO DE PASSAGEM: a questão do “limiar” na concepção egípcia de morte; artigo de Keidy Narelly Costa Matias, em 1o. Colóquio Internacional Histórias e Espaços; acesse clicando AQUI