Culturas Ancestrais de renascimento
O Messias é um predestinado, cumprindo seu papel já definido pelos textos sagrados em uma narrativa que o leva ao martírio, à morte e à redenção pela consagração de sua existência ressurreta.
Não penso que seja alguma novidade que o termo “messias”, tomado como um “libertador”, apareça nas literaturas sacras na perspectiva de ser o salvador de seu povo, o prometido e o enviado por uma força além daquelas que se apoderam das forças humanas. E nem se pode considerar algo novo o cíclico envolvimento dos povos nos seus ritos de expiação e de sacralidade como o período que antecede a quaresma pascal, que é período de carnaval durante o qual há excessos e liberalidades em que são suspensas as relações dos significados já continuados no convívio em sociedade. Afinal, são informações que estão disponíveis nas mais distintas culturas há pelo menos três mil anos, trazendo para a realidade das pessoas, os ritos de suas tradições, as pessoas que possuem origens ancestrais se pensarmos sempre no desenvolvimento de uma humanidade que evolui.
Por outro lado, o que é novo, hoje, é o que recentemente se revela na vida cotidiana das pessoas, sendo algo tão novo que demonstra, como fato na prática da vida cotidiana, a realidade do período da quaresma cristã em que cristãos se dedicam a uma reflexão sobre quem são, isso na individualidade de cada pessoa, e nessa individualidade, estando fisicamente apartado do mundo em que, corriqueiramente, se conhece sua rotina de compromissos. No entanto, também não é a primeira vez que um período de “abstinência comportamental” é validado por uma necessidade de se preservar a vida conhecida, como a um aviso de que tal rotina envolve bem mais do que trabalho e a formação, por exemplo.
Na História, em vários momentos, a quaresma é utilizada para sacralizar o mundo futuro como a terra prometida ou a vinda de um messias libertador. E posterior ao chamado do sacrifício individual e coletivo, há promessa de um bem maior que se ajusta a uma nova realidade humana com o sentido de renascimento do indivíduo para um novo mundo.
Se visualizarmos os milênios, aliás, alguns poucos retratados pelas grafias que podemos chamar “místicas”, a ressurreição já é tema de fortuna ao deus Osíris, que foi morto pelo irmão no panteão egípcio do segundo milênio antes de Cristo, conservando-se no imaginário da humanidade até o presente momento.
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Depois, se pensarmos nas heranças culturais pré-históricas que levam às civilizações, os ritos ancestrais das matriarcas gerando o futuro da vida humana ganham contornos de ciclos naturais que sustentam a interpretação humana à cada estação do ano, pois que, depois do Inverno, chega a Primavera, nos recordando da esperança que depositamos para a existência de um novo dia.
Para os egípcios antigos, nesse sentido, o evento da morte era um atentado à ordem natural da vida quando a morte introduz no corpo do indivíduo um estado de inércia e de letargia, interrompendo a fluidez e o movimento característicos de um corpo animado e vivo. Para o dogma da ressurreição e do renascimento, a morte é um lembrete claro de ser um último empecilho a uma nova existência pós-morte. O significado de luto e de penitência para a expiação das faltas humanas se repete em uma conversão espiritual à crença em um tempo de preparação para o mistério fúnebre. É essa a representação de um período de provações e de dificuldades que ocorre na História quando falamos de povos e de culturas, para além de um valor simbólico que alcança a todos individualmente, ainda que com origens culturais distantes e distintas.
Na Bíblia, os quarenta dias de Cristo no deserto são passados por Ele em provações de toda uma ordem de narrativa diabólica de tentações, sendo um período iniciático ao “mistério” que se revelaria à Eucaristia do corpo e do sangue de Cristo, consumado o sentido de “verbo encarnado”, ao que Cristo dignificou o pão como alimento sagrado compartilhado pelo espírito de um conhecimento divino, e santificou o vinho como bebida viva e sanguínea de sua existência no mundo, sustentando-o e o animando-o.
Da Quaresma, podemos observar o sentido do número quatro, que simboliza, muitas vezes, o universo material ligado à percepção de tempo, algo determinado e cíclico, a exemplo de nascimento, da maturidade futura e da morte física a revelar a compreensão de que a vida é perene, mas que sua sacralidade está na efemeridade do tempo que a sustenta, ainda que a existência da vida permaneça contínua pelos tempos dos tempos.
A experiência da vida é vivê-la, e disso decorre o movimento que a toma positivamente como possível no mundo, como carpe diem, mesmo em condições desfavoráveis como um ambiente em quarentena, algo que ocorre por religiosidade na Quaresma como evento litúrgico relevante à sociedade, e que oportuniza um momento para as reflexões mais íntimas às pessoas, principalmente quando em isolamento social, sendo reflexões que possuem linhas existenciais: O que mudou? Por que mudou? E o que me pede o agora?
Entre o teclar e o descrever aqui as minhas ideias, ouço o deslizar da borda de uma pequena colher que uso para mover o chá, líquido e quente, no fundo da xícara e no tênue sentido de soprar alguns dos meus pensamentos ao longo da escrita. E, assim, caio num estado hipnótico em que ouço coaxar de pererecas num lago enquanto, na verdade, o som é da colher “roçando” o fundo da xícara, sendo o que me transborda, em consciência, é uma outra realidade, essa mais subjetiva a que estou conectado ao tempo presente em que me encontro, revelando-se ser uma ponte.
Em casas antigas de família, parece haver sempre um sótão onde se guarda o que chamam de “quinquilharias” de gerações que usufruíram de livros, de utensílios, de eletrônicos e de brinquedos que, a cada descoberta, apontam para um passado de alguém. Durante o auto-isolamento, encontrei o sótão de minha família como um pequeno acervo de livros organizados em caixas, não muito distante da realidade de minha própria casa.
Numa das caixas do sótão, porém, encontrei “Antes dos tempos conhecidos”, um livro de uma edição da década de 1970, época em que nasci e em que se divulgava muita pesquisa que trouxesse uma gama de explicações alternativas para a realidade humana. Na época, alcançava-se uma perspectiva fantástica de realidade que explorava linhas de teorias tão distintas como as realidades dimensionais e espirituais que foram o mote ao livro “Antes dos tempos conhecidos”. Escrito a sanar a falta de registro gráfico que comprovasse a existência de um tempo possível de ideias e de comportamentos para criaturas, não apenas humanas, mas também antes de qualquer registro dessas, as de gigantes, as de seres extraterrestres, ou as desaparecidas no continente perdido de Atlântida, ou as que explicassem a realização dos segredos das Pirâmides do Egito, entre tantas muitas outras abordagens que podemos chamar de controversas na época e que espelham as necessidades por respostas a exemplo de sua histórica própria, isto é, de alguns conhecimentos já datados, e que hoje teriam outras explicações por meio de outros livros publicados mais recentemente.
Ainda assim esses conhecimentos são formas de observações sobre uma época histórica que se busca pelo literário, porque na grafia de “Antes dos tempos conhecidos” não se percebe uma exigência a um rigor científico, embora os argumentos à tese de que civilizações caíram no esquecimento pela falta de testemunho histórico escrito prevaleça no livro na forma de justificar as ideias de que tais civilizações extraordinárias existiram. Para mim é um bom livro, ainda que datado.
Hoje o olhar sobre o tempo não pode se esquivar da linha dos milênios, mesmo porque o que se toma como novo normal nada mais se é do que se apresenta como um passado recauchutado, precisando rodar por mais alguns séculos. E o que pensamos, por uma geração, na verdade, é o pensamento de uma única passagem em que as gerações passadas e as futuras se encontram como num estado mágico de percepção.
Ver também, na mesma linha, Ancestrais da Escrita
Bibliografia citada:
KOLOSIMO, Peter. Antes dos Tempos Conhecidos. Editora Melhoramentos, edição de 1971.