Parte 2 de "Cosmovisão egípcia"
A abertura da boca
As múltiplas interpretações sobre as tecnologias possíveis à visão da sociedade dinástica do Antigo Egito.
Foi uma indicação de leitura das mais preciosas que já tive. De tempos em tempos, visitamos um sítio em que reside um amigo pesquisador, onde nos hospedamos com a simpatia da pessoa que nos recebe de braços abertos. É uma pessoa de muitos livros, já que a leitura é seu passa-tempo favorito em meio à vida no campo, sendo lá, um lugar em que encontramos boas dicas de leituras, e dentre essas, a dica sobre o biólogo e evolucionista Jared Diamond, autor de “Armas, Germes e Aço”.
Aliás, é desse amigo o exemplar do livro que tenho consultado nos últimos tempos, amigo a quem pretendo devolver o livro na próxima oportunidade de uma visita, agradecendo desde já pela generosidade do empréstimo.
Quanto ao livro que o biólogo e evolucionista J. Diamond nos traz como resultado de seu trabalho de pesquisa, é muito valiosa a perspectiva que ele revela sobre os últimos treze mil anos, período entre a última Era Glacial até o início da Era Moderna da história da humanidade. Nesse período, de acordo com o autor, há uma diversidade de “tempos” tecnológicos, dos quais cinco mil anos nos são conhecidos em razão de um registro gráfico, ou seja, graças à invenção da escrita e a um desenvolvimento da comunicação humana através da interpretação de signos/signais escritos.
Ora, se sabemos que a comunicação por meio de signos (sigil/”sinal”) é uma forma de prática ancestral de interpretação mágica humana desde o Paleolítico, temos uma questão a responder, e que é: como, no transcorrer de centenas de milhares de anos não haveria de ter existido, de maneira concomitante, outras dimensões de conhecimentos relacionados a civilizações por nós desconhecidas? Afinal, no que se encontram as perspectivas de trocas simbólicas humanas ao ser uma relação básica à formação de suas sociedades?
Quanto tratamos da domesticação do trigo e da cevada pelo ser humano, (ambas culturas datando próximas a 8000 anos a. C., ou, no mínimo, a 4000 anos passados da última Era Glacial), até procuramos demonstrar que há um desenvolvimento humano com algum desenvolvimento dos seus meios de vida, os quais se ligam efetivamente aos recursos do meio ambiente, mas, sobretudo, devemos entender que foi, nos últimos 2500 anos, o período em que encontramos as maiores transformações tecnológicas em termos de impacto ambiental produzido pelo o ser humano que, por sua vez, adapta o seu espaço para as suas necessidades culturais e antropológicas, alterando-a mais do que à vivência do que foi um dia a natureza (physis) de sua existência. O “paraíso” do qual fizemos menção na primeira parte deste artigo, é de onde parece ter saído o ser humano ao deixar a pré-história na qual alguma tradição de conhecimento se contava pela oralidade das experiências abstratas, maneira de conservar o conhecimento pela oralidade rítmica das histórias, nas quais o próprio ser humano se desenvolve a partir da ideia da potência do que poderia vir dos fatos dos quais tudo poderia, sim, surgir como eventos extraordinários de pensamentos mágicos verbalizados.
A boca como passagem
Até tratar dos afluentes do Nilo como berço da civilização egípcia, que foi uma fartura de grãos representada no delta do Rio do Egito Antigo, gerando também proliferação de doenças pelo acúmulo de recursos e de pessoas situadas numa mesma região, J. Diamond esclarece o que de modo lógico deveríamos supor existir como um todo no histórico da humanidade: uma multiplicidade de tempos e uma simultaneidade de eventos, correlacionados ou não, com aspectos tecnológicos diante de fatos que poderiam se dar paralelos e considerados possíveis. Por exemplo, Diamond explica que entre 11000 a.C. e o ano de 1500 d.C. existiram diferentes ritmos de desenvolvimento tecnológico e de transformação de recursos nos vários continentes do planeta, resultando em desigualdades tecnológicas e geopolíticas experimentadas de maneira independentes até o ano de 1500, período a partir do qual foram feitas as Grandes Navegações e as práticas expansionistas de um Colonialismo Europeu sobre o restante do mundo. Depois, sobre o tripé do título do livro “Armas, Germes e Aço”, pode-se compreender que até 1500, tratava-se de um mundo multidimensional em que os tempos tecnológicos co-existiam quanto à diversidade técnicas aplicadas de tal modo a entendermos que conviviam num mesmo período, e em um canto do planeta, o uso de instrumentos à base de metais enquanto, num outro, se teria o emprego de instrumentos feitos de pedras lascadas. No entanto, a partir de 1500, a prática de uma expansão marítima de reinados europeus levaram a impactar as regiões mais recônditas do globo terrestre, a não haver mais canto no mundo em que se desconheça um modo de vida ocidental passados 519 anos. É um livro muito interessante. Afinal, demonstra com fundamentação a importância da alimentação à percepção de sociedade humana, relacionando, por exemplo, a domesticação dos grãos de cereais à aglomeração de populações ribeirinhas, criando hábitos de um “fermentado” à base de uma bebida que poderia ter ocorrido de maneira natural quando tal população conservava seus alimentos em utensílios de feitos de barro, gerando um estado de convivência à cultura em relação a um estado de desenvolvimento interior perceptivo.
O impacto da dimensão tecnológica do uso da cerâmica para fins de conservação de alimentos e produção de fermentados foram consequências possíveis à cadeia de produção de utensílios em série: o barro molda o ser humano para a percepção de existir uma imagem, um cognitivo meio de interpretação de signos como se existissem à disposição do ceramista todos os elementos necessários ao jogo da percepção do quanto é possível revelar pela exploração do objeto do pensamento e do que pode ser visível e somente acessado apenas por uma imagem da realidade ainda não constituída através do barro.
A impressão dos signos, a interpretação e o poder da criatividade imagética da comunicação, e um cotidiano governado por ciclos compreendidos a partir de forças divinas que a tudo organizava e sustinha tratava-se de uma cosmovisão possível à realidade egípcia que nasce a partir do caos pela força da imagem com que nos dispomos a pensar um passado tão remoto.
Por isso, penso que a realidade da sociedade egípcia no ano de 3000 a.C. estava sujeita a um cotidiano regrado por muitas formas de culto, beirando antes daí os indícios dos ritos iniciais da classe sacerdotal egípcia que legitimaria as dinastias de Rá, deus Sol, sobre toda a civilização egípcia, porque já é certo que a importância do panteão egípcio ao cotidiano e à cultura local se explicaria por meio de uma herança de natureza totêmica, ou seja, tribal, tanto de origem africana quanto semítica de Médio Oriente, dando à antiguidade do Egito, as formas das figuras dos deuses antropomórficas que, de maneira geral, eram associações de qualidades humanas a qualidades e formas animais e vice-versa, servindo ao propósito de comunicar os limites de um reinado a partir de um sinal específico que o representasse, como provavelmente ocorreu para a união dos reinos do Baixo e Alto Nilo ao se constituir um teocrático Estado egípcio com base na figura pública do faraó sob um reinado, o de Escorpião-Rei.
E é muito interessante notar que alguns dos indícios de um pensamento abstrato com registro datado do paleolítico venha a ser encontrado no continente africano, não muito distante da região em que convergiam tanto um conhecimento nato de uma realidade mágica local, quanto a um conhecimento multicultural de crenças que tinham origens mais distantes, como da Mesopotâmia, por exemplo.
Continua em “A Esfinge“.
Bibliografia citada:
DIAMOND, Jared M. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Trad. de Nota Assessoria, Silvia de Souza Costa. 6a. edição. RJ: Record, 2005.